Estrada de Ferro Bahia e Minas deixa saudade e inspira compositores

Ela foi inaugurada há 130 anos para integrar o Nordeste de Minas e o Sul da Bahia. Hoje as estações antigas clamam por reforma

 
    

 postado em 19/05/2012 06:00 / atualizado em 19/05/2012 07:21
Beto Novaes/EM/D.A Press
Bahia ainda se escrevia sem “h”, Araçuaí tinha dois “s” e a esperança andava nos trilhos para garantir a integração regional. Foi nos tempos imperiais, sete anos antes da Proclamação da República, que começaram a circular os trens em direção a um porto no Oceano Atlântico. A Estrada de Ferro Bahia e Minas estava a todo vapor para transportar madeira e café, fomentar o comércio, tornar rápidas as viagens e acelerar o desenvolvimento. Mas a história durou pouco mais de oito décadas, deixou saudades na população e hoje é um fantasma na paisagem dos vales do Jequitinhonha e Mucuri. Estações foram abandonadas, dormentes arrancados deram espaço a estradas vicinais e uma página da história descarrilou.

A maria-fumaça deu seu último apito em 1966. De lá para cá, a via férrea foi cantada em prosa, verso e rendeu livros – o mais famoso lamento está contido na música Ponta de Areia, composta por Fernando Brant e Milton Nascimento e gravada por Elis Regina, Nana Caymmi e pelo próprio Milton. Eis um verso da canção: “Ponta de areia, ponto final/Da Bahia-Minas estrada natural/Que ligava Minas ao porto, ao mar/Caminho de ferro mandaram arrancar”. Ponta de Areia ou d’Areia, conforme a grafia antiga e o verso, era a última parada em Caravelas (BA) para quem vinha de Minas.
De uma família de ferroviários e natural de Ladainha, no Vale do Mucuri, Arysbure Batista Eleutério escreveu Estrada de Ferro Bahia e Minas – A ferrovia do adeus, obra na qual descreve a construção da via férrea de 600 quilômetros, que teve o seu primeiro trecho de 149 quilômetros, entre Serra dos Aimorés (MG) e Caravelas, inaugurado em 1882. Desde o início, relatou o autor, os problemas foram frequentes, como o ataque agressivo de índios, surtos de febre amarela, chuvas contínuas que atrasavam o cronograma, aridez do solo, com rachaduras e perda do serviço, e deslizamento de terra. Muitas vezes, construía-se num dia e, no outro, estava tudo por fazer.

O lado bom também está descrito em A ferrovia do adeus, título que traduz o sentimento dos moradores em relação ao fim do caminho de ferro. Eram as festas de inauguração das estações. Em Teófilo Otoni, em 3 de maio de 1898, os sinos das igrejas badalaram, a multidão foi para as ruas e o estouro de morteiros e de bombas cabeça-de-negro “cobriu de fumaça o céu azul”. E mais escreveu Arysbure: “Desde a Praça Argolo até a estação moderna da Praça do Governo (Praça Antônio Carlos), todo o trecho estava enfeitado de bandeirolas, girândolas, estandartes e folhas de coqueiro”.

Colecionador de livros, mapas e outros documentos sobre as ferrovias brasileiras, além de estudioso do tema, o professor de maquetes Paulo Scheid, tem um carinho especial pela estrada “que ligava Minas ao porto, ao mar…”. Aficionado do ferromodelismo, ele tem na sua casa do Bairro Carlos Prates, na Região Noroeste de Belo Horizonte, as miniaturas da locomotiva. Para completar a cena típica do fim do século 19, há esculturas de homens de terno, mulheres com sombrinhas e carroças passando ao lado da máquina a vapor, vagões de carga e de passageiros. “Foi uma estrada muito importante, feita para integrar duas regiões e depois ao resto do país”, afirma Scheid, enquanto examina, todo orgulhoso, a composição sobre os trilhos.

Moradora de Novo Cruzeiro, a professora aposentada Maria de Lourdes de Souza Rocha Barbosa era adolescente quando os trens pararam de circular. “Era o único meio de transporte da região e o fim da linha causou muito desemprego”, recorda-se a professora, cantando um verso de Bahiminas, do conterrâneo José Emílio Guedes: “Os meninos na estação, a bandeja está vazia. A miséria está no bolso, pra tentar comprar feijão. Vai embora, Bahiminas, rumo adentro o meu sertão”.

Altos e Baixos 

Puxada pelas mãos da Justiça, a história da via férrea volta à tona. Esta semana, o juiz de direito da comarca de Araçuaí, Eduardo Monção Nascimento, concedeu liminar, em ação do Ministério Público Estadual, determinando a retirada de famílias que moram há sete anos nas estações de Engenheiro Schnoor (1940) e Alfredo Graça (1942), nas comunidades rurais de mesmo nome. Além disso, a prefeitura, proprietária dos imóveis, deverá fazer obras emergenciais nos prédios a fim de garantir a preservação. “Araçuaí é um dos poucos municípios do interior do país com três estações ferroviárias”, afirma o promotor de Justiça Randal Bianchini Marins, que vai firmar termo de ajustamento de conduta (TAC) para conservar outro imóvel, a Estação Araçuaí, da década de 1940, na região central da cidade. As três, segundo o presidente do Conselho Deliberativo do Patrimônio Histórico e Cultural de Araçuaí, Jackson do Espírito Santos, foram as últimas construídas ao longo da ferrovia.

O projeto de construção da ferrovia ligando Araçuaí a Caravelas era um sonho antigo do político mineiro Teófilo Otoni (1807-1869), destaca Scheid, lembrando que a lei imperial autorizando a construção só foi sancionada 11 anos depois da morte dele. Conforme as pesquisas, o governo mineiro concedeu a empreitada de construção ao engenheiro civil Miguel de Teive e Argolo. Em 1881, a mulher do construtor, dona Joviana, deu o golpe de martelo pioneiro para afixar o primeiro trilho da estrada, que começou em Ponta de Areia e foi concluída em Araçuaí.

Altos e baixos acompanharam a trajetória da via férrea. Em 1885, uma crise financeira interrompeu a obra e, 15 anos depois, o governo de Minas vendeu o acervo para dar um caráter industrial e comercial ao empreendimento. Dessa época em diante, foram muitos os administradores. Em 1912, por pouco tempo, a estrada esteve sob comando dos franceses da Compagnie des Chemins de Fer Fédéraux de L’Est Brésilien. Na sequência, foi incorporada pela Estrada de Ferro Federal Leste Brasileiro e transferida para o Departamento Nacional de Estrada de Ferro e Viação Férrea Centro Oeste. O último apito foi ouvido em 1966 e a explicação era de, no lugar do leito, surgiria uma rodovia, o que não ocorreu.

A canção Ponta de areia tem mais um verso que emociona: “Velho maquinista com seu boné/Lembra do povo alegre que vinha cortejar/Maria-fumaça não canta mais/Para moças flores, janelas e quintais/Na praça vazia um grito um ai/Casas esquecidas viúvas nos portais”. Viajar, portanto, pela Estrada de Ferro Bahia e Minas, só mesmo pela música, estações que ficaram ou estão na memória dos ferroviários e moradores das cidades cortadas pela estrada.

Linha do Tempo 


1880 – Em 26 de agosto, é sancionada a lei imperial que autoriza a construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas
1881 – Em 16 de maio, é fixado o primeiro trilho da ferrovia, em Caravelas (BA)
1882 –Em 9 de outubro, é feita a primeira viagem num trecho ferroviário entre Minas e Bahia
1882 –Em 9 de novembro, a ferrovia é inaugurada, estando concluído o trecho entre Caravelas (BA) e Serra dos Aimorés (MG)
1885 – Crise financeira e falta de dinheiro para pagar empreiteiras interrompem a construção da ferrovia até Teófilo Otoni
1898 – Em 3 de maio, é inaugurada a estação de Teófilo Otoni
1910 – Governo de Minas vende acervo da ferrovia para implementar comércio e indústria na região
1966 – Estrada de Ferro Bahia e Minas deixa de funcionar
2012 – Justiça manda Prefeitura de Araçuaí retirar famílias que ocupam duas estações e preservar os imóveis

“Ponta de areia, ponto final/Da Bahia-Minas estrada natural/Que ligava Minas ao porto, ao mar/Caminho de ferro mandaram arrancar” Trecho da música Ponta de Areia, de Fernando Brant e Milton Nascimento

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